Decreto nº 12.686/2025: ignora a realidade, afronta a democracia e ameaça a inclusão
Por: Dra. Paula Alves Costa Luppi (OAB 218.801)
Sou mãe de um menino autista. E aprendi, na prática, que ser mãe atípica é viver em constante luta — não apenas por direitos, mas por dignidade. Foi com tristeza e indignação que recebi a notícia da publicação do Decreto nº 12.686/2025, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sob o pretexto de “reorganizar políticas educacionais”, o texto representa um grave retrocesso na inclusão de pessoas com deficiência e transtornos do espectro autista (TEA) no Brasil.
Leis e direitos violados
O Decreto nº 12.686/2025 afronta diversos dispositivos legais de hierarquia superior:
- A Constituição Federal, em seus artigos 205 e 208, inciso III, assegura a todos o direito à educação e prevê atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino;
- A Constituição Federal, art. 84, IV, e o principio da separação dos poderes, art. 2º;
- A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional, determina, em seu artigo 24, que nenhum estudante pode ser excluído do sistema educacional geral sob alegação de deficiência.
E há um ponto jurídico ainda mais grave: o Decreto, sendo ato normativo hierarquicamente inferior à lei, não pode suprimir direitos previstos em lei ordinária.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), em seu artigo 58, reconhece as escolas e classes especiais como parte legítima do sistema educacional, destinadas ao atendimento especializado de estudantes com deficiências severas, quando comprovada a necessidade. O novo decreto, ao ignorar completamente essa previsão, usurpa a competência do Congresso Nacional e fere a harmonia entre os poderes.
Ademais, o Decreto viola o Princípio da Isonomia, que determina que devemos tratar os iguais os desiguais na medida de sua desigualdade. O Decreto 2.686/25, aponta o publico alvo da política: estudantes com deficiência, autismo e altas habilidades.
Porém, para identificar, dispensa o laudo médicO, e cria o “Estudo de caso”, de natureza puramente pedagógica, ferindo não somente a isonomia, como afrontando a Lei Maria Berenice Piana (Lei 12.764/12), que define a pessoa com Transtorno do Espectro Autista com base em critérios clínicos claros (deficiências persistentes na comunicação, padrões restritivos e repetitivos, etc.).
O Decreto, ao tratar a avaliação biopsicossocial (o padrão constitucional), como “subsidiária” um “Estudo de caso” pedagógico (que não está previsto na Convenção nem na LBI), está invertendo a hierarquia das normas. Um ato infralegal (decreto) não pode criar instrumentos de avalição, já previstos na norma constitucional (Convenção).
A própria lei 12.764/12 ao criar a Carteira de Identificação (Ciptea), exige expressamente “um relatório médico, com indicação do Código de Classificação Estatística internacional de Doenças e problemas relacionados à saúde (CID)”.
Isso representa uma violação direta ao artigo 5º, parágrafo 3º, da CF c/c o art. 2º da Lei Brasileira de inclusão, por diminuir o rigor técnico e a segurança jurídica na identificação do sujeito de direito da Convenção
Entidades que perdem força — e famílias que perdem voz
A publicação do decreto enfraquece diretamente instituições históricas na defesa e acolhimento de pessoas com deficiência, como as APAEs (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais), as Associações Pestalozzi, os Institutos Benjamin Constant e Nacional de Educação de Surdos, entre tantas outras. Essas entidades, que há décadas são referência em educação, reabilitação e acolhimento, perdem protagonismo e autonomia. A lógica do decreto centraliza decisões em estruturas burocráticas, distantes da realidade das famílias atípicas e das escolas especializadas que realmente fazem a inclusão acontecer.
Sem o suporte dessas instituições, milhares de famílias ficarão desamparadas, e muitas crianças e adolescentes com autismo, deficiência intelectual ou múltipla simplesmente ficarão sem escola. E quando uma criança com deficiência é excluída da escola, sua família inteira é excluída junto — emocional, social e economicamente.
Um decreto que ignora a realidade e afronta a democracia
Mais do que um erro técnico, o Decreto nº 12.686/2025 representa um retrocesso civilizatório.
Ignora que a inclusão é um processo coletivo, construído por famílias, educadores e instituições ao longo de décadas de luta. E fere de morte o princípio constitucional da proteção à pessoa com deficiência como dever do Estado e direito fundamental.
A hora é agora: mobilização política e social
O momento é político. A sociedade civil, as famílias atípicas, as APAEs, as instituições de ensino, e principalmente os parlamentares comprometidos com a inclusão precisam agir com urgência.
Já foi protocolado, no último dia 21 de outubro, pelo senador Flávio Arns, o Projeto de Decreto Legislativo nº 845/2025, que visa sustar os efeitos do Decreto nº 12.686/2025.
É fundamental que esse projeto seja votado e aprovado antes do recesso parlamentar, que começa em 23 de dezembro, para que o Brasil não entre em 2026 sob a sombra da exclusão institucionalizada.
Um apelo de mãe
Não falamos aqui de política partidária, mas de humanidade. A Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012), que reconheceu o autismo como deficiência e abriu caminho para tantas conquistas, não pode ser desrespeitada. As crianças com autismo severo, as pessoas com deficiência intelectual e múltipla não são números nem estatísticas — são vidas que dependem de políticas públicas sérias e sensíveis.
A inclusão não é caridade. É direito. E quando o Estado se esquece disso, é dever da sociedade lembrar. O momento é de mobilização, voz e coragem — porque retroceder na inclusão é retroceder na civilização.


